terça-feira, 17 de maio de 2016

A MONTANHA PARIU RATOS


Conquistamos liberdades; precisamos defendê-las! Mas, igualmente, faz-se necessário criar um movimento que, partindo das demandas e das reivindicações as mais diversas possíveis, reavive e ao mesmo tempo controle o mundo político”. (Alain Torraine)

A crise não faz amadurecer os problemas; ela não derruba somente as folhas mortas, mas as próprias árvores”. (Alain Torraine)

Existe um provérbio português, “a montanha pariu o rato”, que aplica-se a todas as coisas pomposamente anunciadas e que na realização produzem uma grande decepção, ou seja, resultado pífio diante da expectativa gerada.

A Montanha chamada Estado brasileiro pariu ratos, facilitado por ilusões de uma classe média manipulada e manipulável.

A jabuticaba brasileira também miscigenou ratos com gatos que proliferam diante dessa ingênua classe média brasileira que acredita em qualquer conto de fadas para adultos.

Como sempre, em nossa história, utilizam o combate à corrupção como meio de ganhar a opinião pública, minando as forças progressistas. E como sempre conseguiram iludir a tal classe média, que acaba por ser linha auxiliar dos intentos golpistas.

Quando os ventos mudam um pouco, os de cima decidem decretar que a subida acabou. Unificam-se para impor sua agenda de diminuir o custo do trabalho, atacando conquistas, jogando a crise nas costas do povo.

Os de baixo buscaram ascender alguns passos montanha acima. Em determinado período foi possível facilitado por ventos mais favoráveis na geopolítica e na economia.

Por um tempo foi possível dividir um pouco do “pirão”, mas quando minguou implementam uma ofensiva para ficar com a montanha só para os endinheirados.

As classes dominantes com volúpia querem o Estado só para eles. Alimentaram o ódio, o fascismo, organizando uma direita retrógrada, homofóbica, racista. Todas instituições articularam-se para buscar recuperar os rumos da travessia para as elites.

Os do topo não aceitam que os de baixo avancem e criaram uma avalanche, articulando a grande mídia, o judiciário, órgãos policiais do Estado e um Congresso fisiológico, implementando um golpe pois pelas urnas não conseguem impor seu projeto regressivo.

Marx afirmou que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. No Brasil a tragédia e a farsa andam juntas.

Não estamos enfrentando voluntaristas desarticulados. É um cerco, com conexões internacionais (vide Venezuela, Argentina, Paraguai, Honduras, etc.), que se fechou sobre o governo brasileiro. Tem uma extensa articulação no parlamento, no judiciário, na Polícia Federal, sendo coordenado pela grande mídia.

O Golpe consumado expressa o final de um período, abrindo-se um novo ciclo. Descortina-se uma nova fase da luta de classe. A crise está a gestar o novo, ou o velho. Os caminhos estão em disputa.

Ou encerra-se o ciclo progressista com a imposição da retomada do neoliberalismo com mais volúpia que na década de 90, ou o projeto progressista se revitaliza e aprofunda as mudanças necessárias. É uma luta de longa duração.

Dia 17 de maio, ficou cristalino a farsa montada no Congresso Nacional, mostrando para a população a desqualificação e falta de integridade da maioria dos deputados, gerando tristeza para os democratas e progressistas de nosso país. A confirmação pelo Senado, sem conseguirem argumentos para justificar os atos foi didático.

Foi um momento de derrota para os democratas, mas também de acúmulo. Ganhamos as ruas, ampliando o apoio popular para a resistência ao golpismo. Conseguimos equilibrar a narrativa, caracterizando como golpistas os golpistas. Os corruptos foram desnudados e Refluiu o apoio da opinião pública

Também estamos avançando no sentido de deixar claros os reais interesses das elites. Acabar com direitos sociais e trabalhistas, abocanhar nossas riquezas, sacrificando nossa soberania. Começa a cair a ficha.

Devemos ter claro que ainda o sentimento é de generalização do descontentamento e persiste um desconforto com o PT e ao governo Dilma. São sentimentos difusos que precisam ser levados em conta.

O Golpe só está sendo possível devido à profunda perda de apoio popular pelo governo. O governo Dilma perdeu governabilidade por articulações golpistas mas também por seus vários erros, especialmente no segundo mandato.

Não vão conseguir enganar todo o tempo. A opinião pública, passo a passo, começa a condenar todo o saco. Estamos em processo, como sempre. As lutas de classe nunca estiveram tão vivas. E, por incrível, quem agudizou-a foi a direita.

Nesses momentos o sentimento de classe e ilusão de classe se aprofundam. Os progressistas precisam de clareza e firmeza para conquistar e transformar a montanha.

A Montanha, o Estado, cheira a falência com uma sensação de fim de tempos e período. Entramos em um processo onde a resistência terá mais peso na balança da correlação de forças. Precisamos de uma ampla frente progressista para acumularmos e retomarmos a ofensiva.

A MONTANHA QUE DEVEMOS CONQUISTAR
as pessoas não se rebelam quando 'as coisas realmente vão mal’, mas quando suas expectativas são frustradas”. (Zizek)

Foram longe demais para recuar. Os ataques continuarão. O alvo principal será Lula, alternativa concreta de vitória em eventual eleição. Criminalizar os movimentos sociais é outra necessidade.

A política que querem impor só é possível com golpe e precisam eliminar quem pode organizar a resistência na defesa dos direitos democráticos, sociais e trabalhistas. Operam “à la Maquiavel” - fazer a maldade no início, reprimindo violentamente para que não se crie a necessária resistência ativa.

A tarefa imediata é não dar trégua ao governo golpista, deslegitimá-lo para que não aplique seu programa reacionário. Negar o golpe significa negar o governo e implica lutar por um novo governo.

Acima de tudo precisamos organizar profunda resistência aos ataques aos direitos sociais e trabalhistas que certamente ocorrerão.

Mas a luta não deve ficar circunscrita somente a processos eleitorais, precisamos de um novo sistema político que deve ser viabilizado por uma constituinte onde o povo seja mobilizado e chamado a decidir.

Fazer a disputa em todos os espaços para, acima de tudo, dialogar e convencer o povo das reais intenções das elites. 

O Central para o sucesso de nossa resistência é que tanto as frações progressistas da classe média – elas também existem – quanto a nova classe trabalhadora e trabalhadores precarizados da periferia, que hoje são feitas de tolas por seus algozes, compreendam que têm muito mais a ganhar com um Brasil mais inclusivo.

Para isso precisamos constituir bandeiras que dialoguem com o sentimento popular. Não poderemos avançar somente com movimento de vanguarda, nem nos movendo somente pelo calendário eleitoral.

São alvissareiras as mobilizações da juventude, dos artistas e intelectuais, da comunidade internacional. Mas rapidamente precisamos superar as dificuldades dos sindicatos de envolver as categorias de trabalhadores em um movimento de massas. Também precisamos tirar o povão do sofá e disputar a classe média.

Há um sentimento de saturação com as instituições. Isto pode potencializar as lutas no próximo período, se soubermos canalizar o descontentamento para que seja feita uma verdadeira faxina, com uma reforma política substantiva.

Devemos continuar afirmando nossa crítica à política econômica. Infelizmente o segundo governo Dilma implementou o programa perdedor que tende a ser aprofundado com Temer. 

Essa postura do Governo nos trouxe dificuldades na narrativa, todavia os movimentos sociais têm denunciado e lutam por outro rumo desde os primeiros momentos, garantindo a credibilidade para continuar apontando um caminho diferente.

Uma tarefa elementar é enfrentar o monopólio da mídia, um verdadeiro quarto poder. Mas essa batalha não deve se limitar aos marcos institucionais buscando regulamentar esses excessos. Precisamos criar formas alternativas de comunicação, especialmente nas redes sociais que tem sido trincheiras importantes de resistência.

O movimento sindical, em especial, não consegue ser contemporâneo na comunicação. Nos comunicamos de forma tradicional, não conseguindo avançar em relação as profundas mudanças tecnológicas, de linguagem e de meios. 

Não é somente saber lidar com as ferramentas. Precisamos avançar também no conteúdo e na forma de comunicar.

Nesses intensos momentos, devemos aproveitar cada ação, cada fato, para acumular forças e convicções. Muitas batalhas estão a ocorrer.

Muitas iniciativas e lutas se espalham pelo país. Canalizar, derrubar os diques que separam essas lutas e unificar em objetivos comuns é que vai dar potência e permitirá sairmos da crise com um Brasil muito melhor e uma esquerda revigorada.

No mundo também, em várias partes, a população questiona as políticas de austeridade e as tradicionais formas de representação, onde as elites se mantém no poder através de conluios e manipulações, de costas para a maioria social.

Urge colocar na ordem do dia uma pauta de futuro que leve os trabalhadores a pensar numa agenda de desenvolvimento, com emprego e renda e com democracia substantiva.

Precisamos acreditar no novo, juntando solidariedades, avançando na mobilização e no convencimento popular. Resistir com coragem, enfrentando cada momento com inteligência e ousadia.


quinta-feira, 12 de maio de 2016

SOU BANCÁRIO E NÃO SOU TOLO



Sou bancário e quero democracia. Pois sem democracia não há conquista para os trabalhadores. Pelo contrário, a história mostra, que amargamos profundas perdas.

Sou bancário e não tolero corrupção, nenhum tipo de mal feito. Minha ojeriza à corrupção não é seletiva, é indignação quanto a qualquer ato de desvio de conduta, doa a quem doer, assim ensinou meu pai.

Sou bancário e não tolero injustiça. Corruptos rasgam a constituição e destituem uma pessoa honesta, legitimamente eleita pela maioria. Já vi muitas injustiças no dia a dia de trabalho. Colegas injustamente demitidos, sem direito de defesa e colegas com medo de testemunhar a favor do injustiçado.

Sou bancário e sendo trabalhador, estou do lado dos trabalhadores e nunca do lado dos patrões e das elites que exploram há séculos o povo. Não posso participar e concordar com iniciativas apoiadas pela FIESP, FIERGS, FENABAN, Itaú, os patrões que nos sugam. Dando duas raciocinadas já daria para entender o que está por trás do golpe;

Sou bancário e não sou trouxa. Não vou à rua para defender um golpe à constituição comandado por corruptos contumazes, com provas provadas, protegidos pela mídia golpista. Eduardo Cunha, Aécio, Serra, Temer, Bolsonaro e muitos mais. Por favor, né!

Sou bancário e sei o que significa a tentativa de impeachment. Procuro me informar e sei que os golpistas sequer escondem seus objetivos. Entregar Pré-sal; privatizar bancos públicos (PL 555),; terceirizar (PL 4330); acabar com a CLT (13°; FGTS); abolir os programas sociais, etc. Está escrito!

Sou bancário e não ignoro a realidade por uma raiva emocional que não se sustenta na realidade. Tem que ser muito sadomasoquista para apoiar uma tentativa dessas, é tiro no pé, vai virar contra.

Sou bancário, acredito na fraternidade, na união de classe, na luta coletiva, e sei identificar quem é contra mim, minha família e meus amigos: os banqueiros, as elites desse país que enquanto damos nosso suor para desenvolver a nação, tomam champagne e desfrutam uma vida de glamour.

Sou bancário e quero uma mudança na política econômica. É inadmissível uma política recessiva que beneficia o rentismo prejudicando os trabalhadores e sei que agora essa visão está totalmente no poder e vai aprofundá-la.

Sou bancário e defendo uma reforma política, única forma de acabar com a corrupção e empoderar o povo. Hoje o modelo eleitoral brasileiro serve às elites corruptas.

Sou bancário e não fujo à luta justa. Estarei sempre do lado dos trabalhadores, nunca do lado de quem nos explora. Não acredito nesse conto de fadas para adultos que muitos desavisados estão incorporando na mais pura ignorância (e olha que são “informados” - pena que a fonte é corrupta também– Rede Globo, corrompe as mentes, os políticos e não paga os impostos devidos).


domingo, 21 de fevereiro de 2016

ALZHEIMER SOCIAL



O sono da razão cria monstros (Goya).
Pior que o sono da razão, de Goya, é o sono da memória…
tenho tido longas conversas com a minha paranoia, tentando acalmá-la. (L.F. Veríssimo)

O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos” (Simone de Bouvoir)



Mais uma vez na história brasileira, parcelas consideráveis da classe média são mobilizadas para fortalecer o pacto conservador brasileiro contemporâneo.

Sabemos que as classes médias são segmentadas, possuem grupos com interesses e ideias distintas. Mas seguimentos numerosos e importantes estão a defender, com paixão incomum, um núcleo de ideias apavorantes.

Esses segmentos apaixonados apagam da memória recente, com apagador umbilical, os avanços sociais indiscutíveis.

Perdem funções cognitivas básicas ao não lembrar o que significou anos de ditadura. Ao se fazer de tolo e não considerar os prejuízos sociais dos anos FHC com desemprego, privatizações, perda de soberania, crise econômica, onde o Brasil quebrou três vezes.

Além de seus interesses “ameaçados” – teme por seu lugar de privilégio devido ao encurtamento do espaço social com a inclusão de amplos setores das classes populares, que foi a principal obra dos últimos governos.

Esquecem da melhora social do país, dos ganhos de todos, inclusive criando muitos pequenos e médios empresários que usufruíram do crédito e do crescimento.

Agem, mesmo que inconscientemente, como tropa de choque dos interesses dos endinheirados.

A raiva de muitos da classe média é contra o fato de que esquecidos setores populares estão agora competindo pelo espaço antes reservado à classe média.

Nas primeiras dificuldades viram o cocho e esquecem. Centram-se em interesses mesquinhos, agarrando-se no conto do vigário, que o problema é a corrupção, que surgiu agora e é culpa do Lula e do PT. Argumentos que não se sustentam com uma mínima raciocinada.

Em um verdadeiro tiro no pé, ficam na dependência das elites cuidadoras, com esses pensamentos burgueses que não refletem no bolso.

Apegam-se à cantilena global, ao moralismo tosco, colocando sua cabeça dentro da TV, em seu mundo desconectado com o real. Ou vão às ruas travestidos, cheios de preconceitos, sem conceitos sólidos.

Desorientam-se ao abraçar a simplista abordagem de que os males do Brasil é a corrupção do estado e que o mercado é virtuoso imune a esses problemas.

Esquecem que esse embate não é novo. Desde Vargas domina a história política do Brasil.

Em tempos de crise econômica, onde a política de distribuição menos desigual fica mais difícil, os endinheirados não querem mais saber de benefícios para os subalternos. Querem abocanhar todos os recursos escassos, cortar os investimentos sociais e ficar com o Estado só para eles.

E a classe média vai na onda dessas ideologias que manipula sentimentos e anseios muitas vezes não compreendidos por nós mesmos.

Não se trata de compactuar com mal feitos ou com politicas equivocadas que muitas vezes faz o que não disse e não faz o que afirmou.

Trata-se uma visão de mundo e de sociedade. Na prática a classe média contribui para que o moinho injusto das elites seja irrigado com preconceitos e seletividades, com a fulanização da corrupção. Somos feitos de tolos.

Como sinaliza Jessé souza, o “partido da sociedade para poucos” operante. O contraponto, o partido da sociedade para a maioria popular, vai ter que emergir, impondo a hegemonia dos subalternos.

Se acham inteligentes e acabam tendo comportamento bovino, de manada, reproduzindo factoides, acriticamente, em óbvias manipulações.

Se acham espertos e não conseguem separar a seletiva tentativa de incriminar somente a esquerda e o PT por atos de corrupção. A “fulanização” da corrupção só serve à sua continuidade.

Se acham honestos, éticos e não revoltam-se contra a corrupção endêmica patrocinada pelas elites ao longo de nossa história.

Parece que precisam achar um canal para extravasar seus medos diante da sociedade de risco. Risco de perder status.

E, com todo capital cultural que tiveram privilégio de receber, aceitam a cantilena de que o criminoso é o funcionário do estado ou o batedor de carteira pobre.

Não vemos a mesma indignação contra o especulador de Wall Street, que frauda balanços de empresas e países e arruína o acionista minoritário e embolsa bônus milionários.

Enquanto os primeiros vão para a cadeia os segundos ganham foto na revista time como financista do ano.

Reproduzem o discurso enviesado da corrupção, seletivamente. Posam de éticos e esquecem da humilhação cotidiana da grande maioria do povo da qual tornam-se cúmplices.

Não revoltam-se com a grande desigualdade social do Brasil, poucos ricos e muitos pobres, a grande vergonha nacional.

Odeiam o Lula porque leem na Veja e assistem no jornal Nacional.

Acham até que os pobres podem ter um futuro melhor, mas eles têm que fazer por merecer. Seus filhos têm muito mais e iludem-se que é fruto de seus méritos em um mundo de oportunidades desiguais.

As elites manipulam com competência esse Alzheimer Social e o egocentrismo infantil. Cuidado, pode ser contagioso.

Miro no futuro mas não esqueço o passado. Minha memória recente está ativa e busco compreender a história, juntando os nexos.

Sou classe média e luto cotidianamente contra essa patologia pois acredito na humanidade e que as classes são desiguais.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A PLATAFORMA




P. e o povo de Bouvó não conseguiam sair do, cada dia mais ínfimo, pedaço de terra que os abrigava.

A montanha rochosa, enorme, os empurrava em direção ao mar bravio, com imensas pedras a encurralá-los.

A montanha avança, ou seria o mar?

Eram sufocados, também, por uma minoria que habitava o topo da montanha. Eram obrigados a pagar tributos com parte da sua produção de alimentos e de utensílios. Caso contrário, os povos do topo, represavam os córregos de água cujas nascentes estavam sob seu controle.

Viam com esperança aquela ilha que só aparecia, no longínquo horizonte, em dias claros.

Mas era impossível a saída para o mar. Seja a nado ou mesmo com embarcações. Voar não era coisa para os homens e para as mulheres. Todas tentativas terminaram em desastres.

Eram pedras pontudas, ondas gigantescas, como ninguém pode imaginar. Só o povo de Bouvó sabia. Todos os dias olhavam com medo para as imensas vagas que explodiam nas imensas rochas.

Buscaram, com muitas tentativas e por muitos anos, conquistar a montanha. Várias expedições de populares tentaram atingir o topo. Muitos morreram.

Quem chegou mais perto foi a turma organizada por P. , mas quando estavam quase chegavam no cume, os do topo, poucos moradores de lá, os excluiu provocando avalanches. Muitas perdas de vidas rolando montanha abaixo. P. sobreviveu por um milagre.

No leito de quase morte, entre um sonho e outro, P. idealizou a construção de uma plataforma que sobrepujaria os obstáculos e garantiria o acesso ao alto-mar, longe das ondas gigantes e dos rochedos abissais. Assim poderiam zarpar com embarcações.

“Uma plataforma para avançar, superar as ondas e os rochedos”.

Mas foi recebido pelo povo de Bouvó com ceticismo.

Anos de polêmica. Não foi fácil convencer.

Havia aquele que dizia ser impossível. “Não temos os insumos adequados”.

Alguns apoiaram buscando levar vantagem com o empreendimento, o que gerava desconfiança.

Outros temeram que a liderança de P. crescesse se o empreendimento desse certo. Assim perderiam espaço político e liderança no futuro, naquela ilha.

Vários alegavam não valer o risco da travessia e acreditavam ser uma ilha inóspita, sem garantias para a sobrevivência de todos.

O projeto foi sendo adiado pois a Plataforma precisava do engajamento de todos.

Mas a montanha continuava a avançar sobre o povo, estreitando os espaços e o tempo. Ou seria o mar?

P. defendia que, se fosse para morrer esmagados ou servis, era melhor arriscar, acreditar na utopia. Aquela ilha era a esperança e, como esperança não é uma emoção passiva, exige gente em ação, quase todos decidiram ir atrás de seus sonhos

Premidos pelas circunstâncias, enfim decidiram levar adiante a ideia.

Alguns decidiram não participar e ficar. Eram pertencentes às médias, como eram chamados esse grupo de indivíduos.

Nem todos os médias ficaram, mas uma ampla maioria resolveu fazer juz à denominação e fazer média com os do topo

Decidiram realizar mais uma tentativa de escalar a montanha e negociar com os do topo uma convivência onde se dispunham a uma servidão voluntária.

Nunca se soube ao certo sobre os resultados da tentativa. Parece que ficaram no meio do caminho.

Levaram incontáveis anos a empreitada de construir a Plataforma para o povo que decidiu acreditar ser possível conquistar o mundo novo.

Muitos moradores morreram, outros nasceram. Gerações renovaram-se, mas a ideia da plataforma os manteve unidos diante do medo da montanha e pela esperança de tempos melhores.

E a montanha continuava a se mover. Ou seria o mar?

Por fim, terminaram a construção da plataforma comum e dos barcos que levariam a todos até aquela ilha.

A plataforma era uma construção imponente. Contornava os arrecifes em lugares onde diminuía seu tamanho. Estendia-se a quilômetros, mar adentro, até onde o mar acalmava-se e as ondas não formavam-se.

Em um dia ensolarado iniciaram a travessia. Zarparam em seus barcos rumo a ilha. Os olhares esperançosos compartilhavam corpos ansiosos onde o medo ainda era presente.

O tempo bom não acalmou a fúria do oceano. A travessia foi tortuosa. Vagas enormes desequilibravam os navios. Alguns afundaram. Mas a maioria conseguiu triunfar pois não tiveram medo de ousar.

Surpreenderam-se ao constatar que não era uma ilha. Era um continente.

Por todos os lados haviam muitas montanhas a conquistar.

Anos se passaram e P. despediu-se do povo e subiu a montanha mais alta.

De lá P., ancião, olha para a montanha de Bouvó sendo engolida pelo mar. Ou seria a montanha que afundou sob suas estruturas?

Constatou que Bouvó não era um continente, era uma ilha!

Quem tinha tudo no topo daquela montanha agora tem o mundo líquido que construíram, boiando no mar bravio.

P. espera, tranquilo e solitário, sua luz interior apagar-se.

E consagrou-se à única tarefa de dormir e sonhar.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

SINDICATO E CULTURA, TUDO A VER!


                                         
                                               Desintrincar o real no interior do imaginário. (Safatle)

O que a cultura tem a ver com sindicato?



Respondo com outra indagação: Como pode o sindicalismo desprezar a ação cultural se pretende ter uma postura transformadora, contra-hegemônica?



Embora pareça secundária ou mesmo irrelevante, a questão cultural deveria ser considerada uma das prioridades do movimento sindical.



A cultura cumpre vários papéis na vida social. Seja como fator de discriminação sociopolítica, seja como instrumento de dominação ideológica, seja como forma de resistência das classes dominadas, seja, enfim, como forma de criação com potencial de emancipação e de libertação histórica.



Se a cultura fosse algo de menor importância, seria incompreensível a atenção que lhe é dada pelo Estado contemporâneo e a expansão dos meios de comunicação de massa como instrumentos de legitimação da ordem vigente e de conformismo social e político.



Torna-se ainda mais relevante nos dias atuais, onde a batalha simbólica é a principal luta que está sendo travada.



A realidade atual torna cristalina a afirmação de Marx de que “a classe dominante tem o monopólio da produção e difusão das ideias” (controle dos modos de produção intelectual).



Só que avançaram ainda mais na dominação. Hoje também “tem o monopólio da produção de emoções”.



A guerra do Iraque é um exemplo de manipulação. Esbanjaram mentiras e ilações para justificar a invasão – combate ao terrorismo -, onde manipulam emoções de ódio e medo dos muçulmanos. Sabemos que os objetivos reais são econômicos e geopolíticos.



O que fazem no Brasil não fica atrás. O ódio, o preconceito saiu do armário e é destilado por variados setores contra a esquerda, escamoteado na luta contra a corrupção.



São manipulações que escondem interesses “que não se podem exercer à luz do dia”. Constrói e reproduz o senso comum, uma verdadeira “violência simbólica”, onde amplas parcelas, sem dar-se conta, defendem situações que deveriam criticar pois são contra seus reais interesses.



Diante disso é importante construir uma política cultural consistente, desenvolvendo uma crítica criativa e competente contra o senso comum e suas ilusões.



Devemos construir um movimento cultural que questione o instituído, que integre as variadas expressões culturais de um mundo paralelo pulsante, que seja um difusor de visões transformadoras.



Pensar uma política cultural deve incorporar a preocupação da superação dos limites do sindicalismo que, nos dias atuais, avança célere para o aprofundamento da burocracia e do economicismo.



Essas “doenças senis do sindicalismo”, corroem a necessária disputa pela hegemonia social, onde o embate por visões e perspectivas de mundo, que coloque o ser humano como central, pressupõe práticas e políticas também transformadoras.



Torna-se necessário, também equacionar a questão do imediato versus o permanente e buscar condições para que na ocorrência do primeiro não precise o segundo parar.



A formação e uma política cultural permanente, que não fiquem dependentes dos “espaços livres” da luta economicista, não significam departamentos funcionando e uma diretoria alheia. Pelo contrário, devem estar no dia a dia do dirigente sindical.



Tampouco deve significar somente como produção de eventos. Os sindicatos devem propiciar espaços para a expressão humana, para o exercício solidário, crítico, criativo e libertário.



Devem servir para alimentar e alargar sonhos, utopias e ajudar a construir outro modo de vida: um viver partilhado por todos com dignidade, igualdade e felicidade.



Portanto, diante das profundas mudanças no mundo do trabalho, onde o capital desenvolveu formas sutis e sofisticadas de exploração, com o Estado e a sociedade civil sendo redefinida, a questão cultural não pode continuar sendo secundarizada pelos sindicatos.



É um campo rico para imprimir um “novo” sentido ao fazer sindical. Sentido que nasce da necessidade de compreender o trabalhador como um ser humano por inteiro e não um mero vendedor da força de trabalho, papel a que é reduzido pelo sistema capitalista.



Mas para indagar é preciso conhecer, formar gosto, ganhar competência para integrar signos e códigos.



Mas não são somente interrogações o que nos move. Precisamos exclamar, afirmar nossas identidades, nossos valores.



Em lugar de determinar (ou impor) ações e condutas, devemos estimular a criatividade, potencializando desejos e criando situações de encantamento social.



O desafio é permanente, sempre buscando garantir o protagonismo da categoria, em um processo de envolvimento, construído coletivamente pelas pessoas; fazendo, lutando e sonhando, pois essa é a nossa cultura.






quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

TEMPOS ABISSAIS






 

As coisas mudam no devagar depressa dos tempos” (Guimarães Rosa)



O tempo presente no Brasil está sendo escrito por linhas abissais.



Por mais que o mundo real seja manipulado, produzindo uma névoa sobre os fatos, a política está sendo demarcada.



A cada dia ficam mais nítidas as intenções das elites. Levar o Brasil ao abismo onde os monstros neoliberais buscam voltar com força, sem ter ido.



Com toda volúpia buscam desestabilizar um projeto popular, de nação soberana, menos desigual, com ampliação de direitos sociais.



Para sairmos desse labirinto que se tornou a “conjuntura Brasil”, devemos percorrer os caminhos com a bússola popular.



Essa caminhada sem fim deve ser feita compreendendo as armadilhas plantadas pelas elites.



Mas acima de tudo achar as causas mobilizadoras, com atitudes encantadoras que envolvam, efetivamente, os trabalhadores e os progressistas da nação.



2014 não acabou!



O presente concreto é resultado do passado e está prenhe de futuro”. (Hegel)



Desde 2014 as elites intensificaram seus ataques ao projeto progressista. Tentam golpear a constituição buscando o impedimento da presidenta e também se movimentam para saídas pelo “centro” que nada mais é que uma cortina de fumaça para impor os mesmos objetivos, voltar ao poder e aplicar sua agenda.



O governo Dilma navega nestes mares tortuosos. Seu maior erro é insistir com a política econômica recessiva. Cedeu à ditadura do capital financeiro que potencializa uma crise política sem fim. Submeteu-se às chantagens, tanto do sistema financeiro como dos arranjos políticos das elites, dois temas que, aliás, submetem a sociedade mundial.



Portanto, sustentar-se na pauta popular e reorientar a economia são imperativos, mesmo sendo das tarefas mais difíceis.



2015, resistência popular.



O mal dos tempos de hoje é que os estúpidos vivem cheios de si e os inteligentes cheios de dúvidas”. (Bertrand Russell)



Durante o ano de 2015 os democratas e progressistas sofreram uma pesada ofensiva. Resistimos com perseverança, sendo os Movimentos Sociais decisivos para equilibrar o jogo. E foi dado o recado: não ao golpe, muda política econômica e retoma programa vencedor.



Um ano em que utilizamos de nossas melhores armas. Unidade e mobilização nas ruas com a construção de pautas comuns que deram visibilidade ao confronto – Defesa dos direitos e da democracia e pela mudança da política econômica.



Tendo uma causa justa e aglutinadora o povo vai à luta.



A mobilização contra a reorganização da educação em São Paulo é cheia de ensinamentos. Uma causa concreta, justa. Houve uma ação organizada, ousada, que enfrentou a agenda das elites e aglutinou apoios dos mais variados



A luta contra o PL 4330 também foi um exemplo concreto de potencial aglutinador quando a causa é nítida e essencial. Muita mobilização, paralisações, pressão no Congresso e nas ruas.



A Diminuição da maioridade penal também foi neutralizada.



Quem diria que num momento conturbado como foi o ano de 2015 fosse aprovado o fim financiamento empresarial?



Tanta pauta retrógrada mostraram a sanha conservadora que busca arrastar o Brasil para o atraso. Mas a resistência popular mostrou que não passarão.



A grande causa do momento é a democracia. Em torno dela unificam-se amplos setores, apoiadores ou não do governo. Um golpe dessas proporções seria trágico para a recente democracia brasileira.



Sem democracia os mais penalizados serão os trabalhadores e o povo pobre. O passo seguinte à destruição da democracia é a liquidação de direitos sociais e trabalhista e o ataque a conquistas civilizatórias.



Aliás, já está a ocorrer, é só olhar com atenção a agenda conservadora imposta por Eduardo Cunha e seus asseclas no Congresso Nacional.



Mas também urge recolocar o debate de qual modelo de sociedade almejamos. Essa política econômica não serve. Buscar mudanças na previdência e nos direitos trabalhistas é declarar guerra a quem sustentou o governo enfraquecido. Não pode tratar com desdém a quem sempre lhe deu a mão.



2016, em busca do tempo perdido.



as pessoas não se rebelam quando 'as coisas realmente vão mal’, mas quando suas expectativas são frustradas”. (Zizek)



2016 está em aberto. Os atores estão em movimento. Baixar a guarda é suicídio. Desconhecer a polarização, achando que se pode contentar a todos é um equívoco abissal. As elites não descansarão, é uma luta de longa duração.



No final de 2015 e início de 2016 tivemos duas notícias. Uma boa e outra ruim.



A boa, foi a troca do Ministro da Fazenda que claramente defendia uma agenda neoliberal.



O ruim, foram as declarações do novo ministro da fazenda sobre reforma da previdência e trabalhista, especialmente quanto a mudança na idade mínima para aposentadoria e da prevalência do negociado sobre o legislado nas relações trabalhistas. Pautas que desde os tempos de FHC tentam impor que conseguimos evitar com muita luta.



O povo brasileiro precisa de sinalizações concretas da aplicação de uma outra agenda.



Caso não tenha caído a ficha do Governo Federal, poderá haver “problema no paraíso” e o povo pode sair do sofá, causando um curto no “circuito dos afetos”, com os movimentos tendo que construir novos caminhos.



Portanto, do lado de cá, do campo popular, está muito bem demarcado. Nenhum direito a menos, não ao golpe. É isso e mais além. Queremos avançar com reformas populares substantivas.



Sou do tempo em que debatíamos a necessidade de aprofundar a luta de classes. Parece que atualmente quem busca isso são as elites e consideráveis setores do campo popular iludindo-se nas possibilidades de pactos.



Precisamos deixar claro o abismo que separa as posições em jogo. Mostrar quem está do lado de lá e quem está do lado de cá e o que defende cada lado.



Do lado de cá do precipício sabemos que tomar as ruas e organizar o povo é essencial.



Não vamos deixar-nos levar para o buraco nem nos iludir com pontes que nos levam a lugares indesejados.

O Governo tem que ajudar, retomando a agenda de 2014 que garantiu a vitória eleitoral. Isto é essencial para que a nitidez necessária dos lados em disputa fiquem cristalinos e facilite o convencimento da maioria popular.



Tem o tempo das elites e o tempo popular. “Nossos horários nunca combinam, eu sou funcionário e você especulador/conspirador”.



Buscar o tempo perdido ou vamos continuar perdido no tempo incerto, eis uma questão.



Em 2016, espero – não sentado – que os caminhos sejam desobstruídos e os avanços necessários sejam transportados para a vida popular, com nenhum direito a menos.
Uma certeza, na sociedade do espetáculo não seremos meros espectadores.