segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O TOPO DA MONTANHA





“Eu não sei o que acontecerá agora. Temos dias difíceis pela frente. Mas isso realmente não tem importância para mim, agora, porque eu estive no topo da montanha. E eu não me importo(...)E eu vi a Terra Prometida. Eu posso não chegar lá com vocês. Mas eu quero que vocês saibam que nós, como um povo, chegaremos à Terra Prometida. (Martin Luther King)

Quando tinha 10 anos, S. construiu um carrinho de rolimã. Diariamente tentava subir o morro e levar, no seu carrinho de rolimã, seus sonhos. Mas por anos a fio, quando estava chegando perto do cume, o carrinho de rolimã despencava e descia ladeira abaixo. Mas S. não desistia e sempre voltava a descer ao pé do morro e recomeçava sua subida.

Subia o morro rumo a minha casa.
Depois de muitos anos consegui chegar ao topo do morro sem que meu carrinho caísse ladeira abaixo.
Minha casa ficava lá em cima e se chamava “conquista”.
Foi possível construí-la depois de muita luta e sacrifícios.
Aliás, moramos tempos na rua plana.
Subia diariamente o morro, que era alto e íngreme. Levava, para cima, no carrinho de rolimã, meus sonhos, meu futuro, meu presente.
Depois de viver num buraco na base do morro, conseguimos levar o carrinho morro acima.
Educação; moradia digna; emprego; direitos; dignidade. Tudo empilhado e bem amarrado para não cair do carrinho de rolimã.
Meu carrinho estacionava no topo da montanha e não caia mais.
Haja hoje para tanto ontem.
Só que, certo dia, quase chegando lá em cima, perto do topo do morro, um rapaz bem vestido, com tênis nike, camisa de marca e sei lá mais o quê, aparece do nada.
Me olha com seus olhos azuis, com suas fáscias tensas, exalando ódio e preconceitos.
Istava muito desequilibrado”, como me ressaltou Genésio, “com o peito inflado, metido a besta”, completou.
Tentei um istmo de diálogo, como minha família ensinou: não regredir, não se deixar silenciar. Mas nossas ilhas não se conectaram.
Mas o mimado sujeito, achava que os desiguais devem ser silenciados.
Lembrei neste instante que “a inveja é um tipo de desejo impotente: Ele olha para o invejado e se sente menor, daí sua raiva, o seu rancor. Ele não pode ser outra pessoa, ele não pode ser melhor do que é”.
E o cara, corta a corda em que eu puxava meu carrinho de rolimã.
O carrinho despencou morro abaixo.
Corri atrás desesperado.
O rapaz ria.
Por instantes intermináveis vi o futuro voltar ao passado;
O presente negar futuro;
O presente impor o passado.
Tropecei em uma pedra que atravancava o caminho.
Arrastei meu queixo no areão.
Estirado no chão, com a alma esfolada, quase voltando ao útero de minha bisavó, consigo ver uma multidão subindo o morro.
Carregavam meu carrinho de rolimã com todos meus apetrechos, meus sonhos bem amarrados.
De fato, sozinhos podemos até chegar, mas é muito mais difícil manter o carrinho lá em cima. Acompanhados vamos mais longe.
Na frente de todos, vejo meu neto ainda não nascido.
Haja tanto amanhã para muito hoje.